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“Não se faz segurança pública só com polícia”

Prestes a assumir a coordenação do novo núcleo do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper dedicado ao tema e às suas implicações, Ricardo Balestreri diz que, para reduzir a violência, é preciso levar também serviços básicos para a população

Ricardo Balestreri

Prestes a assumir a coordenação do novo núcleo do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper dedicado ao tema e às suas implicações, Ricardo Balestreri diz que, para reduzir a violência, é preciso levar também serviços básicos para a população

 

Tiago Cordeiro

 

A presença do Estado é fundamental para reverter situações crônicas de violência. É preciso “saturar” as comunidades com policiamento, sim, mas também com todos os demais serviços com os quais os moradores não costumam contar. Um esforço intensivo para entregar desde saneamento básico até cultura, passando pela saúde, por educação e esportes, pode gerar resultados expressivos no longo prazo, ao mesmo tempo que tornam sustentável a atuação dos agentes de segurança.

O gaúcho Ricardo Brisolla Balestreri defende essa posição há décadas. Educador, com larga experiência em alta gestão pública e também em consultoria empresarial e governamental, é graduado em Estudos Sociais pela PUC-RS e em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Tem especialização também em Psicopedagogia Clínica e em Terapia Familiar, e no momento realiza formação em Psicanálise.

Balestreri direcionou sua trajetória profissional para uma série de atividades voltadas à capacitação de recursos humanos, atuando junto a governos estaduais, prefeituras e organizações não governamentais.

Seu trabalho com educação, cidadania, direitos humanos e polícia o levou a receber reconhecimento tanto da sociedade civil quanto das organizações policiais — uma rara proeza. Entre outras ações, ele coordenou módulos de capacitação em direitos humanos para a Polícia Federal; foi presidente, por três mandatos, da seção brasileira da Anistia Internacional; membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República — o chamado “Conselhão” —; e recebeu, em 2011, o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, também da Presidência da República. Antes disso, entre 2008 e 2010, exerceu o cargo de secretário nacional de Segurança Pública, no Ministério da Justiça; nessa função, implementou o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci). Em 2017, assumiu o posto de secretário de Segurança Pública de Goiás. Na sequência, foi secretário de Assuntos Estratégicos do mesmo estado.

Depois disso, Balestreri pôde colocar em prática, no Pará, um plano de longo prazo envolvendo urbanismo social e segurança pública. De 2019 até o início deste ano, foi secretário de Cidadania do estado, onde criou os Territórios pela Paz (Terpaz), que se tornaram um case de grande sucesso em termos de políticas públicas de inclusão social e geração de oportunidades, hoje observado com atenção em todo o país.

Agora Balestreri se prepara para assumir um novo núcleo no Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper: o de Segurança Pública, Territórios e Urbanismo Social. “Estamos falando de uma instituição de ponta, com alta qualificação acadêmica e compromisso em gerar impacto positivo para a sociedade”, afirma ele, sem esconder o entusiasmo com a nova empreitada. Na entrevista a seguir, Balestreri fala de sua trajetória, dos pontos de vista que defende para a área em que atuará no Laboratório e de seus projetos para a colaboração com o Insper.

 

Por que é tão difícil implementar políticas efetivas de segurança pública?

Reduzir a criminalidade é uma demanda que todo governo enfrenta. Existe um caminho simples: é relativamente fácil reduzir indicadores de criminalidade quando você trabalha com dados, identifica manchas onde a violência acontece e satura os locais de policiamento. O efeito costuma ser rápido, mas não é duradouro. Os agentes policiais acabam por se exaurir quando enfrentam sozinhos o desafio.

A polícia é fundamental. Não se faz segurança pública sem polícia. Porém, não se faz segurança pública só com polícia. O Estado precisa saturar as comunidades com os demais serviços que é obrigado a prestar, no entanto não costuma oferecê-los como deveria à população mais pobre. Em geral, no Brasil, os governos ainda focam nas demandas das classes média e alta. As demais classes são tratadas como mão de obra. Os lugares de moradia das camadas mais pobres são as senzalas contemporâneas, onde os mais básicos direitos não são atendidos.

Quando se levam saúde, educação, saneamento, iluminação, oportunidades de empreender, profissionalização, empregabilidade, esportes, lazer e, sim, também segurança, reduzimos os índices de criminalidade de maneira sustentável. Assim, os agentes policiais conseguem atuar sem a pressão insustentável que os conduz, no tempo, à “fadiga de material”.

 

O que precisa vir primeiro, a segurança ou os demais serviços?

Sem segurança pública, a área social não entra, contudo o inverso também é verdadeiro. Em Bogotá, em Medellín, em Presidente Juarez, em Nova York, a criminalidade foi contida como resultado dessa combinação de fatores. Mas eu costumo dizer que a alma precisa vir antes do corpo. Quando assumimos a missão de reduzir a criminalidade em comunidades vulneráveis do Pará, primeiro investimos na formação de uma cultura de paz. Levamos uma gama imensa de ações educacionais e de múltiplos serviços, usando as redes escolares e comunitárias, para apenas depois começar a fazer obras físicas. Por cinco meses, inicialmente, planejamos em intersetorialidade, com mais de 20 secretarias e órgãos de governo. Nesse período, o que eu mais ouvia, constantemente, era a reclamação: “Quando vocês vão começar a trabalhar?”. No Brasil, planejamento é mais discurso do que prática e, quando se ousa planejar de verdade, quase todo mundo estranha. A partir do planejamento é que entramos com as forças de segurança, sempre respeitando os direitos da população, e logo a seguir com o bloco de ações sociais. Todo esse trabalho junto às comunidades abriu caminhos para que a implementação das ações fosse bem-sucedida e gerasse reconhecimento popular e credibilidade, o que nos permitiu o passo seguinte: a construção física das Usinas da Paz.

 

Como se deu a implementação dos Territórios da Paz no Pará?

Selecionamos os nove territórios mais desafiadores em termos de violência e criminalidade, montamos redes de lideranças locais, escolhidas por critérios técnicos, para cogerir o trabalho junto com as autoridades, ingressamos com as polícias para a retomada do controle do estado de direito e levamos, na sequência, todo o bloco de ações sociais do governo, a fim de realizar atendimentos, ouvir demandas, oferecer oportunidades. Em um ano e três meses, oferecemos 1,7 milhão de atendimentos nessas áreas, que, somadas, têm 500 mil habitantes, o que significa que fizemos um esforço intensivo de escutar e beneficiar o maior número possível de pessoas. E então partimos para a construção das Usinas da Paz.

As Usinas são complexos construídos em terrenos que geralmente têm em torno de 10 a 15 mil metros quadrados e 7 mil metros quadrados de área construída. Contam com prédios para atendimento múltiplo em saúde, cultura e educação, além de piscinas semiolímpicas, dojôs, quadras de futebol, ginásios, teatros, escolas de gastronomia, escolas de corte e costura, escolas de liderança juvenil, bibliotecas, hortas comunitárias etc. Hoje são nove Usinas da Paz em operação, somando 2,7 milhões de atendimentos desde o processo de instauração do Terpaz. Onde as Usinas ainda não chegaram, disponibilizamos suplementarmente seis grandes carretas profissionalizantes e de atendimento em saúde e emissão de documentos, capazes de levar os serviços para dentro de comunidades extremamente vulnerabilizadas.

 

De que modo superar os desafios urbanos ajuda a formar uma cultura pela paz? 

O Brasil é um país violento. E a solução para esse problema passa por ações intersetoriais, que estão diretamente ligadas à ocupação dos espaços urbanos. As ações integradas precisam chegar à rotina das famílias, com visão de longo prazo e o cuidado de implementar em projetos-pilotos para depois ganhar escala. É muito comum a política brasileira trabalhar com uma visão de escala sem planejamento: “Se não fizermos para todos, não faremos para ninguém”. E aí não se faz para ninguém, ou se faz para todos, porém sem qualidade e sustentabilidade. O Estado precisa trabalhar com escala, sim, no entanto o crescimento deve ser responsável, planejado, levando em conta os suportes possíveis de capital humano e material.

Outro problema que é gravíssimo e sempre precisa estar no nosso radar é a rasa politização das ações de segurança pública e de urbanismo social, que costuma comprometer seriamente os resultados no longo prazo. Quando uma iniciativa se mostra bem-sucedida, é comum que forças políticas a disputem e assim a destruam, seja pelo “loteamento” entre caciques políticos locais, seja pelo crescimento acelerado e desordenado, no intuito da cabalagem gananciosa de votos. O processo precisa ser sério, técnico: começar elegendo os territórios, geralmente selecionados por alta incidência de criminalidade, baixo IDH e redes comunitárias pré-constituídas. Daí em diante é preciso trabalhar muito, construir credibilidade popular; na sequência prover equipamentos públicos, para reforçar a materialidade, cercar dos cuidados legislativos que possam amenizar os riscos de descontinuidade, tornar a experiência sólida e robusta e somente então expandir, paulatinamente — cuidando sempre para não a fragmentar em sua unidade e universalidade de serviços, diante de interesses políticos “paroquialistas”, personalísticos, clintelísticos, menores.

 

Qual sua expectativa para o Núcleo de Segurança Pública, Territórios e Urbanismo Social do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper, que está sendo criado?

A experiência do Pará se tornou conhecida, tem sido visitada e estudada por acadêmicos e organizações. O Insper foi uma das instituições que sempre se mostrou interessada nela. Por força disso, comecei a participar de debates e seminários promovidos pelo Laboratório. Até que surgiu o convite para atuar na intersecção entre segurança e urbanismo. Minha chegada ao Insper é resultado de toda uma trajetória pessoal e profissional; ao mesmo tempo, decorre do fato de que a instituição é célere em derrubar os muros invisíveis que historicamente separam, no Brasil, a academia da sociedade.

A academia precisa contribuir com pesquisas, estudos e metodologias capazes de fomentar um mundo melhor, uma sociedade mais justa e igualitária. Uma sociedade pacífica é, necessariamente, justa. Disponibilizar recursos e oportunidades de inclusão para os invisibilizados sociais. O Laboratório Arq.Futuro de Cidades é uma experiência ímpar no meio acadêmico brasileiro, que inspira a sociedade e a abastece de conteúdos e boas propostas de transformação social. O novo núcleo deve atuar nessa linha. Estamos permanentemente construindo vias propositivas e as colocando a serviço de gestores, lideranças, pesquisadores, empreendedores. Com essa perspectiva, por exemplo, é que estamos articulando, para breve, entre outras ações, o lançamento do nosso primeiro curso livre, presencial, abordando a indispensável intersecção entre Segurança Pública e Urbanismo Social, voltado a atender as demandas de gestores públicos e operadores de ambas as áreas.

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