Regiões periféricas de São Paulo, como Heliópolis, sofrem mais com as inundações e são as mais negligenciadas pelo poder público, aponta mapeamento realizado pelo Observatório de Olho na Quebrada
Bárbara Nór
Se, historicamente, a cidade São Paulo sofre com o problema das enchentes, elas não afetam a todos da mesma maneira. Certas populações são mais prejudicadas que outras – e algumas das regiões que mais sofrem com esses eventos são também as mais negligenciadas pelo poder público. Essa foi uma das conclusões do estudo “Do Muro Pra Lá: o retrato do racismo ambiental em Heliópolis”, realizado pela União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas) e pelo Observatório De Olho Na Quebrada, com o apoio do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e patrocínio da War Child, Open Society Foundation e ActionAid Brasil.
A pesquisa foi o resultado de meses de interação entre o Observatório de Olho Na Quebrada e o Núcleo de Mulheres e Territórios do Laboratório. Segundo a coordenadora Juliana Mitkiewicz, o principal objetivo do Núcleo é fomentar conhecimento, vivências e práticas que contribuam para a promoção de direito social e melhorias de condição de vida a partir das necessidades e experiências das próprias mulheres nesses territórios. “Buscamos atuar no desenvolvimento de pesquisa aplicada e colaborativa relacionada a essas demandas, bem como promover a troca de experiências e conhecimentos”, diz Juliana.
Ela conta que o tema das mudanças climáticas ganhou força no ano passado depois da posse do novo governo federal e da participação do Brasil na COP28 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas), realizada de 30 de novembro a 12 de dezembro, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. “Entendemos que seria importante discutir essa pauta porque ela ainda é muito homogênea”, acentua Juliana. “O grupo que está mais presente nessas agendas internacionais ainda é majoritariamente formado por homens brancos, muito bem-sucedidos e de grandes empresas”, sublinha ela. “Já aqueles que mais sofrem com as consequências do aquecimento global no dia a dia estão excluídos dessa discussão”, aponta a pesquisadora.
Ocorre que são essas pessoas que justamente podem trazer mais conhecimento e vivências inclusive para a busca de soluções. “O Núcleo Mulheres e Territórios tem como princípio valorizar o saber das favelas e da periferia do Brasil”, afirma Juliana. “Acreditamos que a participação popular junto da acadêmica pode trazer soluções muito mais conectadas com a realidade.”
Com base nisso, o tema da justiça climática foi uma das propostas de projetos em uma disciplina ministrada pelo D-Lab do MIT, em Boston, em parceria com o Insper. Um grupo de três alunas do MIT escolheu participar do projeto e, entre setembro e dezembro de 2022, se debruçou sobre o tema à distância, sempre em contato com as professoras do Insper. E em janeiro e julho de 2023, as três alunas do MIT vieram para o Brasil.
Em parceria com o Núcleo do Laboratório coordenado por Juliana Mitkiewicz, as estudantes desenharam um modelo de escuta e de diagnóstico para entender o que era o tema da justiça climática sob o olhar das mulheres dos territórios de Cidade Tiradentes, da Ocupação 9 de Julho e de Heliópolis. O objetivo era também criar uma metodologia para a coleta e análise de dados de mudanças climáticas que pudesse ser escalada e aplicável para qualquer território.
“Nós visitamos vários territórios e conversamos com mulheres de diversos perfis: as que ficavam em casa, as que trabalhavam, jovens, adultas e idosas. O objetivo era saber o que elas entendiam por mudanças climáticas e como isso afetava suas vidas”, relata Paulina Achurra, professora do Insper e coordenadora de projetos do Laboratório Arq. Futuro de Cidades — e, ao lado de Juliana, uma das orientadoras do estudo. Segundo Paulina, embora o tema das mudanças climáticas fosse conhecido pelos moradores, faltava ainda uma percepção mais clara do quanto essas mudanças já têm impacto em seu cotidiano.
Foi também ao longo desse processo que se percebeu que o assunto chamava muito mais a atenção dos jovens moradores. Alguns, inclusive, já se mobilizavam em pesquisas próprias sobre temas conectados com a pauta da justiça climática. Era o caso do Observatório de Olho na Quebrada, de Heliópolis. O grupo, formado exatamente por jovens, pretendia fazer um estudo das enchentes sofridas pela comunidade — e o assunto acabou se casando com a pesquisa que era feita pelas alunas do MIT. Assim, as iniciativas se uniram. Depois de voltar aos Estados Unidos, as alunas do MIT continuaram em contato, em reuniões online, com o Núcleo de Mulheres e os membros do De Olho na Quebrada, realizando oficinas de troca de conhecimento e discutindo pautas sobre mudanças climáticas e questões sociais.
“Nessas reuniões é que eles [os participantes do De Olho na Quebrada] foram apresentados ao conceito de racismo ambiental”, lembra Paulina. “Eles começaram a identificar que algumas situações vivenciadas em Heliópolis poderiam ser descritas como racismo ambiental, sendo a enchente uma delas”. Se o padrão de chuvas mudou para toda a cidade São Paulo, explica Paulina, é nas regiões periféricas que o problema das enchentes mais persiste e se agrava.
O conceito de racismo ambiental, assim, chama a atenção para o fato de que as consequências da degradação ambiental são mais visíveis em locais mais pobres e com maior concentração de pessoas negras, indígenas e quilombolas. O próprio estudo do De Olho na Quebrada mostrou que, dentro de Heliópolis, por exemplo, as regiões de maior altitude, que são menos afetadas pelas enchentes, são mais caras, enquanto regiões mais baixas e mais impactadas pelas chuvas são as mais baratas.
Além disso, ficou evidente o abandono da localidade pelo poder público, como observa Paulina Achurra. “Eles descobriram, na pesquisa, três órgãos do governo com informações diferentes”, ressalta ela. “Um dizia que não existem pontos de alagamento em Heliópolis [a favela, vale notar, fica em uma região de planície aluvial, cercada de três cursos d’água]. Outro, que existiam pontos de alagamentos, mas nenhum dos pontos identificados correspondia aos que de fato são conhecidos pela população. Já o terceiro órgão identificava os pontos de alagamento, porém os dados estavam desatualizados havia 10 anos”.
Para levantar dados e mapear os pontos de alagamento e a situação em diferentes áreas de Heliópolis, os membros do De Olho na Quebrada entrevistaram os moradores e cruzaram as informações recolhidas. O objetivo era poder confrontar o poder público munido de evidências e dados atualizados. Ao longo da pesquisa, o Insper seguiu apoiando com oficinas de discussão e com o aporte de metodologias científicas. “É uma troca muito forte entre o território e a academia. Nós aprendemos muito com eles sobre metodologias participativas e sobre como fazer pesquisa em território popular e, de outro lado, compartilhamos nosso conhecimento técnico de conceitos e teorias científicas”, finaliza Juliana.