O professor Hedibert Freitas Lopes mostra que as instituições de ensino superior daquele país tentam manter o padrão da distribuição populacional
Leandro Steiw
A inclusão de pessoas negras entre os estudantes das universidades nos Estados Unidos é, proporcionalmente, maior do que no Brasil. Lá, as principais instituições de ensino superior estão tentando manter o padrão da distribuição populacional — 13,5% da população americana é negra —, embora nem todas consigam. Acima de tudo, é um instantâneo bem diferente do Brasil, onde 56% da população se declara preta ou parda. Percentualmente, é quatro vezes mais do que nos EUA.
O estatístico Hedibert Freitas Lopes, professor do Insper que leciona temporariamente na Universidade do Estado do Arizona (ASU), compilou dados de um censo recente. Em média, 13% dos alunos que entram no primeiro ano das graduações de universidades renomadas como Princeton, Columbia, Yale, Harvard, Stanford e Johns Hopkins são negros. No melhor dos casos, a taxa não passa de 16%.
Os números indicam que as universidades americanas estão tentando manter o padrão da distribuição populacional, mas há muitas que ainda não atingiram a meta. Por exemplo, Berkeley tem só 3,8%; Michigan, 3,4%; Carnegie Mellon não chega a 5%; Universidade do Sul da Califórnia, 8,5%; Georgetown, 9%; Universidade de Washington em Seattle, 8,8%. “Muitas dessas universidades, que sabem que estão abaixo do nível de inclusão, são as que tiveram crescimento maior de 2010 para 2020”, diz Lopes. “Por estarem atrás, estão correndo mais que as outras, fazendo várias ações afirmativas para aumentar esses números. Ainda não estão confortáveis como Princeton, que tem 15,4% e cuja inclusão continua crescendo.”
Diferentemente do Brasil, onde as vagas reservadas são consolidadas em editais, por se tratar de seleções públicas na maioria, o sistema de ensino superior dos Estados Unidos é privado. Então, a decisão passa pela boa vontade das diretorias durante o processo de escolha de estudantes, pós-doutorandos e professores. “Existe uma pressão para você dar um carinho extra para as minorias”, afirma Lopes. “Faz-se a análise de mérito, mas sempre atenta a essa necessidade latente em relação a mulheres, negros e indígenas. Aqui nos Estados Unidos, essa preocupação é ainda maior do que no Brasil. Há muitas comunidades indígenas, principalmente no Arizona, que é um dos estados com mais reservas indígenas.”
A pioneira na reserva de vagas para pessoas negras no Brasil foi a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), adotada no vestibular de 2003, seguida por outras instituições estaduais e federais. Em 2012, de 110 universidades públicas brasileiras, apenas oito tinham mais de 50% de ingressantes pretos e pardos. Em 2020, já eram 58, aponta Lopes. Foi um avanço significativo na direção da distribuição populacional.
Nos dois países, o lado bom da notícia não vai muito mais além. As disparidades crescem à medida que se sobe na escala das universidades — de aluno de graduação para mestrando, doutorando, pós-doutorando, professor júnior, professor associado e professor sênior. “A presença de negros vai ficando cada vez mais rarefeita nessas escalas, porque a retenção é muito difícil”, diz Lopes. “Por mais que se tenha 13% de estudantes negros, muitos deles procuram outros empregos, às vezes fora da sua área de formação, para ganhar salários mais competitivos. Algo parecido com o que acontece no Brasil.”
Para o professor, há várias razões para os estudantes negros não chegarem ao ensino superior nos dois países. Uma delas é a taxa de evasão até o ensino médio. “Mesmo que se crie um sistema de cotas, precisa haver pessoas para preenchê-las”, diz. Em 2020, de 10 milhões de brasileiros entre 14 e 29 anos que deixaram a escola sem terminar o ensino médio, 71% eram pretos e pardos. Ou seja, no mínimo 7 milhões de jovens que deixaram de fazer parte daquele grupo que tentaria entrar nas cotas das universidades públicas. “Já existe um corte enorme naquela competição pelas vagas”, afirma Lopes.
Praticamente dois anos de educação formal separam os brasileiros. A média de anos de escolaridade dos brancos é de 10 anos e 4 meses. Dos negros, 8 anos e 6 meses. O analfabetismo entre pessoas acima de 15 anos é de 10% para os negros e de 3% para os brancos. O número de analfabetos limita ainda mais a proporção daqueles que poderiam entrar na universidade pelo sistema de cotas. “Então, não faz sentido quando a sociedade, em geral, fala que as cotas são injustas porque limitam a capacidade do branco”, diz Lopes. “Não! Porque você já está ceifando as oportunidades do negro antes disso.”
Se a pessoa negra conseguir superar esses obstáculos, ainda pode questionar a validade de tanto esforço, tempo e dinheiro destinados à universidade. Segundo uma pesquisa do Instituto IDados, de 2020, 38% dos homens negros e 33% das mulheres negras que têm formação de nível superior trabalham em atividades que não exigem diploma. Por sua vez, em 2021, o salário médio de um homem branco era de 7.000 reais; de um homem negro, 4.800 reais; de uma mulher branca, 4.700 reais; e de uma mulher negra, 3.700 reais. Esses dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, evidenciam ainda um corte de gênero.
As possibilidades vão se estreitando: na hierarquia das empresas, 1% dos cargos em patamar de coordenador, diretor ou presidente ou coordenador são ocupados por pessoas negras, conforme levantamento da Vagas.com, empresa de recrutamento e seleção de pessoal. “Além de ganhar menos no mesmo cargo, o negro com curso superior nunca vai chegar àquele topo”, afirma Lopes. “Metade dos cargos é para empregos operacionais, então ele acaba sendo subutilizado mesmo tendo o diploma.”
Nos Estados Unidos, tenta-se motivar o jovem adolescente ou adulto a continuar na trilha que escolheu na graduação, avalia Lopes. Porém, as perspectivas são distintas do Brasil considerando a distribuição populacional e a abrangência das leis — lá, as legislações estaduais são mais independentes das federais, inclusive na identificação e punição ao racismo. Existem também muitas universidades destinadas à população negra, prestigiadas como a Howard, em Washington D.C., e os community colleges, cuja formação de dois anos costuma servir de trampolim para entrar diretamente no terceiro ano das universidades.
Outras características das desigualdades se assemelham. “Há uma coisa aqui que eles chamam de gentrificação da sociedade”, explica Lopes. “Se os negros se movem para um bairro, os brancos saem e ficam só os negros. Existe muita segregação ainda, então as pessoas se separam mesmo.” O professor compara a São Paulo: “Se contar no mapa dos distritos de São Paulo a proporção de habitantes negros, você vê que no miolo não tem quase nenhum e vai aumentando para as extremidades da cidade, nas zona norte, leste e sul. Por aqui, isso também acontece.”
Na percepção de Lopes, o racismo na sociedade americana interfere menos na mobilidade social. “A pessoa branca não vai querer interagir com a negra, mas a capacidade de mudança de nível social é maior do que no Brasil”, diz. “O negro brasileiro sofre dez vezes mais do que um negro americano ou um brasileiro branco e pobre para chegar ao topo. No Brasil, até pouco tempo atrás, muitas pessoas que são negras não se identificavam assim. Porque o estigma do racismo é tão forte que você acaba não querendo ser negro para não sofrer as consequências do preconceito.”
As pesquisas acadêmicas mostram que, em paralelo à implantação das cotas raciais, a autoidentificação também ajudou a aumentar a participação de pretos e pardos entre os universitários brasileiros. Há pouco mais de uma década, as marcas da discriminação impeliam muitos a se definirem como brancos nos censos populacionais e nas pesquisas de domicílios.
Um estudo do economista Michael França, coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, investigou como os estereótipos apresentados na TV refletiam-se na declaração racial dos brasileiros. A fluidez dessa autoidentificação com o passar do tempo, pelas diversas regiões do Brasil, também aparece no relatório Desigualdade Social sob a ótica do Índice de Equilíbrio Racial.
A grande barreira
Lopes já contou o caminho que percorreu na sua formação educacional e profissional, vindo de uma família de classe média baixa no Rio de Janeiro, oriunda de Mato Grosso do Sul. Ele próprio demorou a mudar a forma como se declarava em fichas e formulários. “Eu sabia que o pai do meu pai era negro e que a mãe desse meu avô era negra, mas a minha mãe é branca de olhos verdes, descendente de portugueses e alemães”, conta.
Ele prossegue: “Só agora, de dez anos para cá, comecei a ter essa ânsia de falar da minha ascendência e a me identificar como pardo. Você vê como a barreira é tão grande. Apesar de a maioria das pessoas com quem eu morava nos conjuntos habitacionais fosse negra, não tinha essa pergunta. Eu me mudei para uma região de classe média habitada por muitos negros e muitos brancos, mas fazia mais parte dos brancos do que dos negros. Depois de morar no exterior, onde existe essa notação de que branco é só o americano ou o europeu e nós somos latinos, tento me identificar como alguém de ascendência negra, mestiço de branco com negro”.
Volta-se à questão da falta de mobilidade social. “O ponto é que, como hoje vivo nessa classe social mais alta, os meus amigos negros foram diminuindo à medida que fui crescendo”, diz. “Colegas de trabalho também. Na Cidade Alta, no Rio, todos os meus coleguinhas eram negros ou pardos. Quando fui para o Méier, que é um subúrbio do Rio de classes média e média baixa, a vizinhança começou a ficar mais branca. Fui para São Paulo e para o exterior, voltei professor, mas na universidade não se encontra professor preto, só tem branco, todos vindos de seus berços.
Da experiência em uma Business School em Chicago, nos EUA, Lopes recorda que, dos 200 professores, apenas um era negro — outro exemplo de como a entrada na universidade não necessariamente garante uma carreira de nível superior para pretos e pardos. “As pessoas negras vão, entre aspas, sumindo da sua vida e reaparecem como empregados”, afirma. “Muita gente que vive no Brasil acha que não existe racismo, mas vive nessa realidade na qual aqueles que estão servindo são negros. Ter mais negros na universidade beneficia todo mundo. A interação é mais heterogênea e se consegue uma visão mais ampla do mundo. Os negros começam a ter as suas opiniões mais expostas. É um caminho árduo, mas importante para mudar um paradigma.”