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Serviços agregados aos produtos desafiam modelo de negócios da indústria

Dissertação de Silvana Gomes no Insper mostra como a servitização impulsiona a expansão das empresas brasileiras para o mercado externo

Dissertação da mestranda Silvana Gomes no Insper mostra como a estratégia de servitização impulsiona a expansão das empresas para o mercado externo

 

Indústrias de diversos setores, como de automóveis, buscam ampliar a participação dos serviços em suas receitas
Indústrias de vários setores, como a de automóveis, buscam ampliar a participação dos serviços em suas receitas

 

Leandro Steiw

 

Na literatura especializada, descreve-se a servitização como um processo de criação de valor pela indústria por meio da agregação de serviços à venda de produtos. É um conceito que surgiu em 1988, mas que tem se potencializado no início do século 21, como constatou a dissertação A Adoção de Estratégias de Servitização na Internacionalização de Empresas, defendida por Silvana Scheffel Gomes no mestrado profissional em Administração de Empresas do Insper, e orientada pela professora Carla Ramos e coorientada pelo professor André Duarte. Trata-se de um estudo qualitativo com 36 empresas e nove associações setoriais, selecionadas entre indústrias de aço, instrumentos musicais, cadeia produtiva do setor têxtil, móveis, equipamentos médicos e odontológicos, máquinas e equipamentos industriais, editorial, medicamentos e cosméticos, eletroeletrônicos e alimentos e bebidas.

A consultoria Accenture estima que 29% do faturamento da indústria mundial já é proveniente da prestação de serviços. E que, nos próximos 10 anos, essa fatia deve chegar a 60%. “A servitização é uma realidade, e as empresas deveriam prestar muita atenção”, diz Silvana Gomes. Durante a pesquisa, ela percebeu que a servitização é bem mais do que cocriação de valor. “Pode-se então redefinir a servitização como uma mudança do modelo de negócios de oferta de produtos para a oferta de serviços agregados ao produto, sem a transferência da propriedade do produto, mas, sim, a posse”, escreve a autora. O que já era realidade no segmento de máquinas e equipamentos estende-se para outras indústrias, desde veículos automotores até a moda de luxo. “Você já não tem a compra do produto em si. O consumidor paga uma taxa pelo uso e depois devolve o produto”, explica Silvana.

Uma das características da servitização, a posse dos produtos é substituída pela locação por períodos predeterminados, por exemplo. A constante necessidade de atualização tecnológica dos produtos leva o cliente a querer trocar produtos e equipamentos por versões mais atuais, uma decisão frequentemente associada a preocupações com a sustentabilidade e a economia circular. Um dos entrevistados, cuja empresa já aluga e faz manutenção preditiva dos seus equipamentos no exterior, relata: “Quase todo o nosso negócio vai ser servitização. Nós vamos só vender serviço, vender horas de máquina, controlar máquina funcionando. Por isso que nós temos que ter esse domínio do que o cliente vai usar”.

Conforme Silvana Gomes, em indústrias mais avançadas na digitalização é comum encontrar modelos nos quais, no passado, as empresas terceirizaram a prestação de serviços — como assistência técnica — e agora passaram a reincorporar esse serviço na sua estrutura própria. No âmbito da internacionalização, empresas com fábrica no exterior servitizaram a sua estratégia e prestam serviços por meio dessa linha de produção. Ou, então, por meio de um parceiro comercial — o importador e distribuidor daquele país também presta o serviço. O modelo depende da importância estratégica de cada mercado no faturamento da empresa. “É natural que se coloque uma operação própria em pontos onde se vende mais”, diz Silvana.

A servitização é comumente relacionada com a transformação digital, por meio da aplicação aos produtos de tecnologias como internet das coisas, computação na nuvem, big data e análise de dados. Em sua dissertação, Silvana focou no uso da servitização como estratégia das empresas brasileiras para entrar no mercado externo. Ela apresenta quatro proposições sobre o tema:

1) A servitização é uma estratégia válida para melhorar a competitividade da empresa internacionalizada em seus mercados de atuação, evitando assim, por meio da diferenciação e agregação de valor, que a empresa saia do mercado por pressão da concorrência;

2) Com o aumento do comprometimento com o mercado causado pelo processo de servitização, a empresa tende a avançar no estágio de internacionalização. A servitização é, assim, um impulsionador da internacionalização;

3) A servitização com a participação de um intermediário no exterior demanda processos de cocriação de valor e relacionamento de longo prazo;

4) A servitização na internacionalização é um meio pelo qual a empresa alcança maior potencial de inovação em função de ter acesso a informações de inteligência de mercado mais apuradas.

 

Níveis de comprometimento

As empresas foram classificadas pelo nível atual de servitização, conforme referências da literatura, em seis níveis de intensidade, partindo do nível zero, no qual não existe um processo de servitização, até o nível cinco, no qual há maior intensidade do processo de servitização. Metade das empresas encontra-se nos níveis um e dois de servitização, 28% estão nos níveis três e quatro e 22% no nível cinco.

A administradora atenta para a amostra bem distribuída dos níveis de servitização. “Temos 25% das empresas no primeiro nível, o que faz bastante sentido dada a complexidade de implantação dessas estratégias à distância”, escreve. “Observamos ainda que segundo dados do Ministério da Economia, por meio do sistema Comexstat, temos cerca de 28 mil empresas exportadoras no Brasil, das quais apenas 500 são multinacionais brasileiras e, segundo dados da Agência Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio Empresarial), 40% são micro e pequenas empresas. Como as pequenas empresas têm maior dificuldade de alcançar maturidade e volume de negócios na exportação, apresentam dificuldades de implantar estratégias como a servitização.”

Na sequência, 25% das empresas estão no nível dois. “Em especial médias empresas que têm consciência sobre as tendências de mercado e da importância da servitização para agregação de valor, porém, ainda oferecem serviços obrigatórios pela legislação do país-alvo, ou que são alavancadores da venda de produtos”, observa Silvana. Nos níveis três e quatro, são 14% das empresas em cada nível. “Nestes casos a empresa avançou para estágios mais elevados de serviços, mas ainda não consegue monetizar e converter totalmente o modelo de negócios para uma oferta de serviços que acompanha todo o ciclo de vida do produto. Talvez possa ser um indicativo de um stuck in the middle: a empresa implantou os serviços, mas não com a velocidade e sofisticação necessárias e apresenta dificuldades para chegar ao nível cinco.”

Segundo Silvana, a servitização funciona melhor quando há maior comprometimento com o mercado externo. “Isso é esperado porque a empresa tem maior controle na ponta e consegue interagir diretamente com o consumidor internacional”, diz. “O mercado internacional tem elementos de bastante risco, tem impacto de legislação internacional, maiores custos, diferentes comportamentos em diferentes países. Frente a isso, as empresas demoram a fazer um investimento maior, se comprometer com o mercado e expandir a operação. A empresa espera a reação do mercado e vai aprendendo sobre o local onde abriu o escritório comercial.”

 

Consumo na pandemia

As empresas relataram que a pandemia da covid-19 impulsionou o processo de servitização, acelerando projetos que careciam de ousadia para ser colocadas em prática. Investiu-se em tecnologia em pouco tempo e converteram-se alguns modelos de negócios para prestar esse serviço em vez de vender o produto. “As empresas com um nível tecnológico mais baixo, de produtos de consumo, tiveram que rapidamente usar medidas digitais para educar o consumidor, então relataram que precisaram fazer grandes investimentos em cursos, workshops e consultorias. Para as empresas que mais exportam, que não têm uma operação internacional consolidada, houve algum impacto negativo, de problemas com a logística internacional principalmente. Mas a maioria relatou aumento de consumo com a covid e que a dificuldade era atender à demanda crescente”, afirma Silvana.

Duas razões principais motivam a adoção da estratégia de servitização na internacionalização. A primeira é a necessidade de dar respostas às demandas de mercado para se manter competitivo no mercado-alvo; a segunda, a inovação da empresa ao criar um novo modelo de negócios, que permite à organização atuar em outro segmento de mercado. Como desafios, a pesquisa identificou o ambiente de negócios, as competências empresariais e a tecnologia, a digitalização e a conectividade — que podem funcionar como impulsionadores, dependendo da estrutura, da capacidade de investimento e da compreensão do mercado que a empresa possui.

 

Uma nova contribuição

Orientadora da dissertação, a professora Carla Ramos diz que, em termos metodológicos, o trabalho destaca-se pela riqueza dos dados de natureza qualitativa que foram coletados ao longo de vários meses, assim como pela robustez da análise exploratória efetuada. “Resultado da sua atividade profissional e acadêmica, Silvana utilizou uma base de contatos de empresas e associações setoriais relacionadas com internacionalização e servitização para conduzir o estudo. A partir de uma técnica de amostragem intencional e de bola de neve, a Silvana conduziu aproximadamente 50 entrevistas em profundidade, tendo descartado algumas por razões diversas”, comenta.

Além das entrevistas, foram utilizadas apresentações institucionais, reportagens e estudos conduzidos por institutos de pesquisa, organizações representativas do setor industrial e órgãos do governo brasileiro, o que aumentou a robustez da pesquisa. “A diversidade das empresas participantes trouxe uma riqueza adicional para o trabalho, permitindo entender se e de que forma os níveis de servitização e de internacionalização das empresas estão associados à adoção da servitização na internacionalização, aos desafios e impulsionadores da adoção da servitização na internacionalização das empresas brasileiras, assim como à forma como a servitização é implementada nessa internacionalização”, afirma Carla Ramos.

O professor André Duarte destaca a importante contribuição da pesquisa de Silvana Gomes tanto para a academia como para a prática. “Seu trabalho é inovador pois conseguiu mostrar como empresas brasileiras estão usando estratégias de servitização dentro do contexto de internacionalização. Estes dois conceitos, servitização e internacionalização, foram pouco explorados de forma conjunta na literatura”, diz Duarte, professor e pesquisador do Insper desde 2002. “Em seu projeto de pesquisa, Silvana conseguiu mapear, através de inúmeras entrevistas, as principais razões que levam as empresas a adotarem estratégias de servitização na internacionalização, bem como seus desafios e impulsionadores. Além disto, traz importantes insights sobre como empresas podem implementar a servitização nos seus processos de internacionalização.”

Silvana Gomes
Silvana Gomes, mestranda em Administração de Empresas no Insper

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