Um grupo minoritário que apoia ideais nazistas deveria ter a liberdade de exercê-la, baseando-se no fato de que a verdade da minoria é tão importante quanto a da maioria?
Felipe Perez Silvestre Puerta
Lançado em 1996, o filme dirigido por Miloš Forman, O Povo contra Larry Flynt, põe em perspectiva o limite da liberdade de expressão. Com tom humorístico, retrata um julgamento ocorrido em 1988 na Suprema Corte americana, decorrente de um processo contra Larry Flynt, editor das revistas pornográficas Hustler. Nele, um proeminente líder religioso alegava que a sátira de que ele havia cometido atos incestuosos com a própria mãe feria sua honra e solicitou uma indenização de US$ 50 milhões. O seu objetivo como leitor ao longo desse texto é colocar-se no papel de juiz e descobrir se Flynt ganhou o caso ou não.
Primeiro vamos resgatar uma situação recente aqui no Brasil, na qual o ex-anfitrião do Flow Podcast, Bruno Aiub, conhecido como Monark, sugeriu que a liberdade de expressão deveria ser ilimitada e, portanto, irrestrita. Ao desenvolver sua ideia, defendeu que deveria existir a possibilidade de que um partido nazista pudesse ser criado, uma vez que todas as frentes ideológicas teriam direito garantido de expressar-se livremente. Independentemente de ter acompanhado o caso, você provavelmente está pensando que isso é uma grande loucura e que, além de improdutiva, essa proposta colocaria diversas pessoas em risco, pois, em sua ideologia, o nazismo prega uma “purificação de raça” a partir do extermínio de determinado grupo para atingir seus objetivos. Agora que esse caso está fresco na sua memória, vamos ao filme.
Um dos principais argumentos usados no longa a favor da inocência do personagem principal é a liberdade de expressão. Ou seja, as publicações feitas pela revista seriam legitimadas pelo direito de exprimir quaisquer ideias que o editor desejasse, e caso algum público se sentisse ofendido ou ameaçado por seu conteúdo, bastava que não o lesse. Um exemplo apelativo usado no próprio filme é o de uma criança se deparando com uma Hustler em uma prateleira de uma banca qualquer. Nesse caso, deveríamos proibir que essas pudessem ser amplamente distribuídas, para que a inocência desses menores de idade seja preservada, certo? Vamos pensar no que aconteceria caso essa mesma criança fosse encontrada em um bar bebendo uma cerveja. Certamente as providências tomadas não envolveriam a restrição da produção de cervejas, do mesmo jeito que não deveria haver censura contra a revista.
Na sentença de Flynt sobre a sátira feita ao líder religioso Jerry Falwell, é resgatado um argumento apresentado por John Stuart Mill em sua obra Sobre a Liberdade (1859), que diz que aquilo que é tido como verdade por uma minoria é tão importante quanto aquilo que é tido como verdade pela maioria. Diante dos juízes da Suprema Corte, Alan Isaacman propõe a seguinte linha de raciocínio: a diferença entre a sátira feita com a personalidade de Falwell (que uma minoria gostou) e os comentários negativos que o evangélico fez contra Flynt é apenas o gosto pessoal, e como a legislação não deveria ser baseada em gostos pessoais, é legítima a liberdade de ambos exprimirem sua opinião. Para que isso fique mais claro, pensemos em um exemplo: seu amigo fez uma piada que ironiza seu time de futebol preferido e em troca você faz o mesmo com o time dele. Será que é justo que ele fique bravo com a sua fala? Afinal, ambos fizeram a mesma coisa, com a única diferença do gosto pessoal. Da mesma forma, Falwell fazia chacota com Flynt, e quando Flynt fez o mesmo com Falwell, foi processado.
Seguindo esse mesmo pensamento, quer dizer que Monark foi coerente em sua fala? Aquele grupo minoritário que apoia ideais nazistas deveria ter a liberdade de exercê-la, baseando-se no fato de que a verdade da minoria é tão importante quanto a da maioria? E no final, Flynt foi considerado culpado ou não?
A resposta para o primeiro par de perguntas é simples: não. A liberdade de expressão não garante que esse grupo tenha suas necessidades atendidas, muito menos defende que sejam exercidos todos os tipos de práticas ideológicas, como exterminar um grupo por exemplo. A grande barreira nesse caso é o campo das ações. Nessa situação, as vertentes nazistas teriam um meio legal para propagar atos que põem um grupo de pessoas em risco.
Quanto à última das perguntas, a decisão da Suprema Corte foi unânime. Flynt foi declarado inocente, com a justificativa de que a liberdade de expressão não é apenas um direito individual, mas também essencial para a busca da verdade e para a vitalidade de uma sociedade como um todo.
Referências bibliográficas
MILLS, J. S. Sobre a Liberdade. Ed especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011
O Povo contra Larry Flynt (legendado). Direção: Miloš Forman. Produção: Oliver Stone, Janet
Yang, Michael Hausman. YouTube. 2 de set. 2013. 2h9min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6MSGltX1I6A>. Acesso em: 11 de mar. 2022.